Blog da Associação Portuguesa de Cister (Apoc)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Mensagem de SOBRADO

O nosso querido amigo e compatriota Fr. José Luís Farinha, actualmente o único português monge professo da Ordem Cisterciense da Estrita Observância (O.C.S.O.), enviou-nos a seguinte mensagem desde o seu mosteiro de Santa Maria de Sobrado, na Galiza.

Escuta filho…

“Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração…” Com estas palavras começa S. Bento a sua regra monástica, querendo assim indicar ao monge que a escuta atenta deve ser a sua atitude vital para viver em fidelidade a sua vocação. Esta é também a atitude que Deus pediu ao Povo de Israel para que vivesse em fidelidade à Aliança: «Escuta Israel, O Senhor é o nosso Deus, O Senhor é único» (Dt 6,4). Para o autor do livro do Deuteronómio, a fidelidade e a salvação de Israel decidem-se na atitude de escuta, ou não, da voz do seu Deus. Por isso encontramos o queixume de Deus: «Mas o meu povo não quis ouvir-me, Israel não quis obedecer…» (Sl 80,12) como sendo este o pecado fundamental, não só do Povo de Israel, mas de todo o ser humano. S. Bento, como mestre experimentado na vida monástica que é, sabe que a disponibilidade para ouvir e acolher a voz de Deus, que ressoa no fundo do coração de cada ser humano e na Escritura Santa, é o caminho que levará o monge (e todo o ser humano) até àquela Fonte Viva donde jorra toda a vida. A “audição” que S. Bento inculca não é somente a auricular, mas sobretudo a “audição do coração” (inclina o ouvido do teu coração), uma audição sapiencial dos desejos e anelos mais profundos do coração humano e uma leitura sábia da existência humana e do cosmos. Ouvir o coração não é uma tarefa fácil, pois nele se cruzam sentimentos e afectos contraditórios, está poluído por muitos ruídos e imagens, está ferido por muitos desenganos e frustrações, é agitado por muitos desejos e paixões vazias de sentido. O homem pós-moderno, cidadão da sociedade tecnológica, tornou-se um consumidor voraz de sons e imagens, mas sem lhes prestar atenção, apenas as utiliza para distrair-se da solidão e das angústias que o habitam, e para evitar encontrar-se consigo mesmo. O homem tecnológico vive de costas para o seu próprio coração, orientando-se principalmente pelos instintos e desejos imediatos que podem dar-lhe uma satisfação instantânea e efémera. Vivemos longe de nós mesmos. Para ouvir o coração e encontrar-se consigo mesmo é necessário o silêncio, “artigo” tão valioso nos nossos dias, porque raro e escasso. No entanto, o silêncio, enquanto ausência de ruídos, é ainda relativamente fácil de encontrar e produzir, o mais custoso é o silêncio do coração, isto é, um coração ordenado e pacificado, um coração unificado e orientado para Aquele que pode encher em plenitude o coração do ser humano: “Fizestes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não descansa em Vós” (S. Agostinho, As confissões). Quando o ser humano começa a pôr ordem no seu coração, emerge a voz d’Aquele que nele habita e pode dizer com o salmista (Sl 26): “Diz-me o coração: procurai a sua face. A vossa face Senhor eu procuro: não escondais de mim o vosso rosto”. Assim, o caminho espiritual monástico consiste essencialmente em buscar o rosto de Deus trabalhando a pacificação e unificação do coração através do silêncio e da escuta da Palavra de Deus. Por isso a Regra beneditina começa justamente com a exortação: “escuta filho…”, disposição sem a qual não se pode ser verdadeiro monge. Entre os muitos testemunhos que a vida monástica dá ao mundo contemporâneo, creio que este testemunho de viver a partir do coração pacificado e harmonizado, viver a partir de si mesmo, aceitando com humildade aquilo que somos e confiando na infinita bondade de Deus, é algo importantíssimo para o crescimento humano e espiritual do homem crente do século XXI.
Como monge cisterciense (português) é com imensa alegria que partilho convosco, neste espaço cibernético dedicado à Ordem de Cister, esta pequena reflexão sobre aquilo que constitui o cerne da nossa vocação monástica cisterciense: ser buscadores de Deus em escuta atenta da sua voz. A paz esteja sempre convosco!

Fr. José Luís Farinha
(monge de Sta Maria de Sobrado)

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